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Às Portas de um Castelo - 3ª Parte



Essa é uma série de contos. Deseja ler a 1ª Parte ou 2ª Parte?

  Um vento estranhamente sonoro soprava à sua volta, dando a impressão de que algo muito grande era arrastado, em algum lugar distante dali. Ainda de olhos fechados, apalpando o solo rochoso e plano em que jazia, o homem sentiu-se aliviado por estar vivo e inteiro. Começou, então, a levantar-se ainda com certa dificuldade, concentrando-se em seus membros – especialmente as pernas – porque temia alguma fratura ou alguma lesão incapacitante em sua coluna vertebral. Quando, finalmente, abriu os olhos, espantou-se com a desolação em que se encontrava e com o céu escuro e nebuloso, como em uma manhã de inverno.
  Ao longe, viam-se alguns picos escarpados do que ele temia que fossem montanhas, mas que lembravam mais troncos de gigantescas árvores sem galhos e folhas. Tal era a distância, que chegou a duvidar que um tiro de rifle alcançasse alguma daquelas colossais colunas rochosas. Aproximou-se da beira do pico onde ele mesmo se encontrava e, em meio a uma vertigem desesperadora, viu que parecia não haver nada lá embaixo que não fosse uma densa neblina e escuridão.
  Cambaleou para trás, procurando algo em que pudesse se apoiar, deu uma olhada em volta e percebeu que na planície rochosa daquele pico onde estava inconsciente há pouco nada oferecia que pudesse tirá-lo dali.
  Ele não sabe quanto tempo passou correndo próximo à beira daquele precipício, mas quando se convenceu que não havia nenhuma maneira de descer, ajoelhou-se e fixou o seu olhar nos picos distantes, ouvindo o ronco surdo do vento. Fechou os olhos, abaixando a cabeça e após alguns poucos segundos, de repente, respirou fundo, abrindo novamente os olhos. Quando se deu conta de que o cenário aterrador ainda estava lá imperturbável, seus olhos marejaram, turvando-lhe a visão e quando lágrimas escorreram pelo seu rosto, foi como se todas as suas forças se esgotassem.
  Chorando com o rosto junto ao chão e as mãos trêmulas em sua cabeça – que parecia girar ensandecida – tentou se lembrar o que havia acontecido e como ele havia chegado naquele lugar isolado, onde – ele tinha certeza – sua morte seria certa.
  Ele se lembrou que esteve dirigindo seu carro a noite toda sem dormir e estava indo para casa, mas não fazia sentido para ele...
  “Espere aí!”, pensou ele, abrindo os olhos avermelhados. “Só pode ter sido isso, claro!”. Com um salto, ele se pôs de pé novamente e começou a caminhar frenético, esfregando as têmporas, forçando as lembranças a saírem pelos olhos.
  De repente, foi como se os fatos estivessem se desenrolando a sua frente.
  A rodovia estava deserta e escura e ele acabara de desligar o rádio para telefonar para um colega de trabalho. Havia algumas coisas suas sobre o banco do passageiro como livros, um laptop e um pequeno espelho de superfície escura. Ele desligou o celular e continuou a viagem, mas não se lembrou de nada que tenha acontecido após o fim da conversa ao telefone e o momento em que despertou. No entanto, uma coisa o preocupava e ele começou a desconfiar de uma coisa que antes negligenciara:
  - O espelho! – disse, cerrando os dentes e pegando uma pedra no chão, arremessando-a no abismo. Por um momento, ele se deteve à beira do abismo, observando a pedra cair, até ela desaparecer em meio à neblina densa e tenebrosa.
  Consciente de que morreria de fome naquele lugar inóspito, ele se deitou no chão frio e rochoso da montanha e adormeceu, desejando ao menos uma fogueira para aquecê-lo. Enquanto ele dormia ali no topo rochoso daquele gigantesco penhasco, o céu escureceu mais ainda, até que nada se restou das nuvens escuras e o vento soprou, assoviando uma cantiga lúgubre, para embalar o sono do homem solitário. Até que uma escuridão tomou conta de tudo e o vento parou de soprar.
  . . .
  Quando ele despertou, percebeu que estava, não mais sobre o solo irregular do topo do penhasco, mas em um imenso salão mal-iluminado, sobre um piso de pedras escuras e aquecido apenas por algumas tochas que crepitavam aqui e ali. Havia um desenho familiar no piso, algo parecido com uma rosa-dos-ventos com nove direções, mas ele só queria saber como havia chegado àquele lugar ou quem o trouxera. Por isso, imediatamente, explorou o lugar na esperança de encontrar alguma vivalma que habitasse aquilo que ele logo descobriu ser um castelo – não com mais espanto do que teve quando descobriu que ainda estava no topo do penhasco. Entretanto, ao invés de sair do misterioso castelo, ele preferiu continuar sua busca por um possível morador.
  Ele nem fazia ideia de quanto tempo levou até encontrar uma sala enorme, com fornos, utensílios simples de cozinha, uma grande mesa, prateleiras com condimentos e uma despensa modesta e, aparentemente, bem-cuidada. Em cima da mesa ele viu uma fruteira com maçãs, bananas, laranjas, maracujás e romãs, sentindo seu estômago revirando ansioso por alguma daquelas frutas e, sem pensar muito se o morador se importaria com a sua ousadia, pegou uma maçã bonita e comeu-a rapidamente, pegando cada uma das frutas, até sentir-se saciado. Receou, mais tarde, que as frutas estivessem envenenadas, mas como não sentiu nada estranho, esse temor desapareceu logo, enquanto ele percorria longos corredores iluminados por tochas de chamas ora fracas e calmas, ora vivas e tremulantes. Ele subia escadas, deparava-se com enormes portas destrancadas, que o levavam de volta ao imenso salão, próximo à entrada do castelo, encontrava sinais de presença humana naquele lugar, mas não encontrou nem mesmo um esqueleto esquecido, sorrindo para o nada. Aliás, de tanto repetir o mesmo caminho várias vezes, não demorou muito para ele conseguir se orientar no labirinto de portas, corredores e escadas. O tempo parecia não passar e ele nem fazia ideia de quanto tempo fazia que tinha comido as frutas, apesar de carregar algumas com ele. Então ele descobriu um enorme dormitório, com escuras tapeçarias na parede, um guarda-roupa muito grande, um sofá feito de madeira, com assento acolchoado, um baú, uma escrivaninha com cadeira e um espelho na parede. Por mais abandonado que o lugar parecesse, a cama – assim como todo o resto ali no aposento – parecia arrumada, como se estivesse à sua espera. Havia uma chave grossa no lado de dentro da porta, que também era grande e parecia ser bem pesada.
  Ele fechou a porta atrás de si, olhou bem cada canto do aposento, que também era iluminado por tochas, trancou a porta e deixou as frutas que carregava sobre a escrivaninha e abriu o baú. Não havia cadeado algum, mas também não havia nada dentro daquela pesada arca de madeira, então abriu o guarda-roupa e se espantou ao ver algumas roupas suas em seu interior, dividindo espaço com roupas antigas e formais. As coisas já estavam bem estranhas, mas ele sentia que muita coisa ainda estava para acontecer. No entanto, ele quis descansar e aquele quarto era perfeito para um cochilo, apesar de ele não ter noção de que horas eram no momento, pois o céu estivera escuro o tempo todo que esteve andando pelo castelo. Então ele dormiu, sentindo o conforto da cama e lembrando-se de casa. O tempo foi passando, mas ele ignorava porque ali o tempo não fazia diferença alguma, pois o céu nublado lá fora raramente clareava, dando a ilusão de que fosse dia. Por isso ele adotou hábitos para marcar a passagem do tempo, à medida que descobria novos aposentos curiosos do castelo, entre eles uma biblioteca, onde havia também uma estranha ampulheta, em que a areia nunca cessava de cair, o que para ele era inútil. Havia uma pequena capela sem bancos, com vitrais abstratos, que nada pareciam significar, tochas e velas, além de uma linda abóbada sobre um altar modesto, que dava a impressão que o sol conseguia iluminar, ainda que debilmente, aquele canto isolado do castelo. Assim, ele passava seu tempo lendo ou apenas folheando os volumes na biblioteca, meditando na capela e explorando o castelo.
  Sempre encontrava coisas abandonadas, mas nenhum sinal de quem as havia deixado. Antes de dormir, sempre encontrava água, pão e ovos cozidos sobre a mesa da cozinha, porém ele nunca conseguiu ver quem preparava a comida para ele, nem mesmo quem abastecia as tochas que nunca se apagavam.
  Até que um dia, depois de tanto tempo, que ele já nem contava mais os dias, ele ouviu um barulho próximo à biblioteca e caminhou silenciosamente, até chegar à porta aberta da grande sala onde os livros ficavam. No centro da biblioteca tinha uma mesa onde ele havia deixado alguns livros e perto dela havia um rapaz alto e magro, com cabelos pretos espetados e os pés descalços, folheando um livro verde-musgo, com páginas feitas de tecido enrijecido com letras bordadas com linhas pretas. O rapaz parecia ser bem jovem, cerca de uns vinte anos e tinha um jeito estranhamente lento de se mover, como se estivesse imerso na água. O visitante estava bem distraído porque nem percebeu a aproximação dele:
  - Quem é você? – mas antes que pudesse perguntar como ele havia chegado ali, um gato preto passou debaixo de suas pernas e passou ao lado do rapaz, que olhou assustado para o homem a sua frente, antes de ser puxado para trás, desaparecendo no ar, deixando apenas o livro aberto sobre a mesa.
  Ainda com o braço estendido, ele tentava encontrar alguma porta invisível, por onde o rapaz havia passado, em vão. Olhou o livro sobre a mesa, preocupado.
  Fechou o livro e levou-o para o seu quarto.


[Fim da 3ª Parte]

Comentários

  1. Adorei a narração do primeiro momento, de confusão e vazio. E também gostei especialmente da expressão “forçando as lembranças a saírem pelos olhos” haha!
    O massa é que no meio da narração, tem umas “observações perfeitas”, com toques poéticos ou psicológicos! hehuahuuahhua
    A combinação do castelo com o receio das frutas envenenadas e o estado de confusão consciente foi super ‘psicanálise dos contos de fadas’ EHUAHUAU *-*

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