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Às Portas de um Castelo - 4ª Parte

Essa é uma série de contos. Deseja ler a 1ª Parte ou 3ª Parte?

...
  Jonas e David folheavam um livro, debruçados sobre uma bancada junto à parede. Enquanto isso, André olhava o grande espelho sem reflexo, apreensivo, sem se aproximar muito. Percebendo a curiosidade do novo amigo, David pediu que ele tocasse a superfície do espelho e garantiu que não havia nada a temer. Então, cuidadosamente, o rapaz aproximou-se do espelho na parede, com o braço estendido e quando as pontas dos seus dedos estavam a poucos centímetros da superfície, Jonas, que observava em silêncio, gritou:
  - Meu Deus! – e vendo o susto que deu em André e, consequentemente, em David, caiu na gargalhada, apontando para o novato. – Te peguei!
  Passado o susto, David, que passou pela mesma situação antes, sorriu, balançando a cabeça, mas André estava assustado ainda.
  - Vá em frente. – disse David, procurando acalmá-lo.
  Levantando o braço, lentamente, o garoto posicionou-se quase de lado em relação ao espelho e dando passos curtos aproximou-se o suficiente para tocar a superfície, porém seus dedos avançaram, sem qualquer resistência, para além dela. Perplexo, ele ainda mexia a mão e encolhia os dedos, tentando entender como aquilo seria possível.
  Deixando o livro sobre a bancada, Jonas se levantou, com o dedo em riste:
  - Como você já deve saber, nós estamos dentro do espelho. – apontando para André. – Dentro do seu espelho, para ser mais específico! É a segunda vez que você vem aqui, mas é a primeira vez que está lúcido. Quase como naqueles sonhos em que você descobre que está sonhando e, até certo ponto, parece ter controle sobre o sonho.
  Ele se aproximou de André, que ainda estava diante do espelho, olhando para sua própria mão, intacta, depois da experiência.
  - Dentro de cada espelho, temos a sensação de estarmos totalmente acordados, exceto pelo primeiro indício de que a jornada pelos sonhos começou: a ausência de reflexo. – dizendo isso, acenou para o nada refletido na superfície negra do espelho e continuou. – Raramente alguém vê seu próprio reflexo nos sonhos, mas geralmente o reflexo não corresponde realmente ao sonhador. Na realidade, é como se o nosso reflexo fosse o verdadeiro obstáculo para atravessarmos um espelho comum.
  “Quando David e eu estávamos a caminho, acredito que a superfície ficou palpável, impedindo que você cruzasse para um de nossos espelhos. Fique esperto da próxima vez! Aliás, você pode querer nos fazer uma visita pelo espelho, mas isso pode ser complicado no começo, mas com dedicação vai ser moleza. Pense em quem você quer visitar, atravesse o espelho de olhos abertos, pois isso consolidará a experiência, dando-lhe a certeza de que não se trata de um sonho comum. Vai ser tão rápido quanto atravessar uma porta... ou um corredor esquisito. Costuma variar!
  David circulou pelo lugar onde estavam e tomou a palavra:
  - Pelo jeito você ficou com a garagem, mas isso aqui vai precisar de uma arrumadinha – disse ele, para André, enquanto chutava de leve uma caixa lacrada com fitas, onde estava escrito “Dados e Planilhas”. – No entanto, vamos deixar as modificações para depois porque será mais difícil mudar alguma coisa enquanto estivermos presentes. Comece mudando a cor ou o formato dos tijolos, organizando cada coisa espalhada, como essas caixas...
  - Acho que aqui está faltando um banheiro! – disse André, interrompendo a explicação de David.
  Voltando à bancada onde o livro continuava aberto, Jonas falou, fazendo sinal para eles se aproximarem:
  - Acho que não é uma boa ideia pensar em suas necessidades fisiológicas. Uma vez eu me vi dentro de um banheiro e tentei aliviar no primeiro mictório que encontrei pela frente...
  Os outros dois sentaram-se à bancada e, sem prestar atenção ao livro, André quis saber o que havia acontecido quando Jonas  foi ao banheiro, mas foi David quem respondeu:
  - Ele urinou tanto que, quando parou, tinha molhado a cama! – Ao notar que Jonas balbuciava alguma coisa, ele retorquiu: - Mas num foi verdade?! Ele precisa saber disso.
  Então Jonas, procurando se concentrar no plano, folheou o livro e explicou que, baseado em suas próprias experiências, tinha uma forma muito fácil de chegar a algum lugar dentro de um sonho; na verdade, duas: concentrando-se em algum lugar com o qual se tenha sonhado antes, o viajante era transportado para bem perto  ou no lugar exato ou ainda, mas um tipo de viagem menos específica, era escolher uma direção ou um propósito e correr, sem se deter por cansaço.
  André olhava o livro para tentar ler alguma coisa e então ele perguntou a Jonas que livro era aquele. Fechando cuidadosamente o livro, Jonas contou que encontrou-o há um ano na biblioteca da faculdade, onde descobriu como se lembrar dos sonhos que tinha e como confeccionar um espelho de nove lados.
  - Acontece que o livro original estava escrito em inglês e eu levei um tempo traduzindo tudo, mas uma noite, bem antes de fazer meu primeiro espelho, eu sonhei que estava do lado de fora de um castelo imenso e tenebroso e quando cheguei à porta, instantaneamente me vi em um corredor escuro.
  “Andei por esse corredor e quando passei por uma porta, eu vi uma sala grande e mal-iluminada, com livros em estantes e outros espalhados sobre uma mesa. Entre aqueles livros, um deles me deixou muito curioso. Era um livro claramente feito de algum tecido escuro e todas as letras bordadas com linhas pretas. Não tive tempo de ver o conteúdo do livro, pois alguém apareceu e me flagrou. Como ainda não tinha controle sobre isso, acabei acordando assustado, mas nunca me esqueci desse sonho. Quando descobri como viajar pelo espelho e como ir a lugares com os quais eu já sonhei, obviamente, eu tentei voltar ao castelo, mas nunca consegui. Eu acho que era seu tio no meu sonho... Eu posso estar enganado, mas seu tio deve estar mesmo naquele castelo. Eu sinto isso! Agora, preciso encontrar uma pessoa para me esclarecer algumas coisas e, quem sabe, essa pessoa tenha alguma ideia de como chegar ao deserto de montanhas, onde o castelo deve estar. Eu tenho um palpite... No livro original havia umas iniciais que devem ser do seu tio: J. D. Qual é o nome do seu tio?
  - Edgar Moretti. Essas devem ser iniciais do autor ou do antigo dono.
  - Não faz sentido! – Jonas parecia desapontado. – Seja como for, não temos tempo a perder.
  Dito isso, Jonas guardou o livro em uma sacola de couro, além de uns papéis xerocados dos livros da Torre dos Ventos e caminhou em direção à grande porta da garagem. David e André levantaram-se quase ao mesmo tempo e seguiram o amigo, que parecia ansioso. Apertando um botão discreto na parede de tijolos avermelhados, a porta da garagem se abriu, revelando uma rua vazia por onde eles andaram observando cada coisa, desde o céu escuro que não revelava nem ao menos uma estrela tímida aos sonhadores comuns que apareciam pelo caminho. André reparou que, ao contrário deles, os outros sonhadores estavam descalços e caminhavam lentamente, mas não teve tempo de perguntar a Jonas porque, inesperadamente, quando andavam por uma calçada, ele ordenou que entrassem no beco, à esquerda.
  Assim que entraram no beco, André teve a impressão de que a rua desaparecera e por pouco não voltou para verificar o que havia mudado, mas David, que o seguia de perto, fez sinal para ele continuar em frente.
  De repente Jonas parou. Havia uma placa com um círculo vermelho e uma seta.
  - Siga em frente?! – falou André, incrédulo. – Mas não tem saída!
  O beco terminava em uma enorme parede escurecida pelo limo, sem nenhum sinal de túnel, porta ou quaisquer meios de atravessá-la. Jonas então fez menção de voltar, mas se deteve e voltou-se na direção da parede, apontou para um ponto mais alto dela e disse:
  - Não é para seguir em frente, André. A placa é bem clara: ela significa “suba”! – Havia um buraco no alto da parede, grande o bastante para passar alguém por ele.
  - Mas como vamos subir? – perguntou André, olhando em volta. – Não estou vendo nenhuma escada.
  Abrindo os braços, como a se equilibrar em uma corda-bamba invisível no chão, Jonas olhava o buraco na parede fixamente.
  - Você já sonhou que estava voando? – perguntou ele, mas como André não respondeu, ele continuou. – Quando se está voando nos sonhos, o que mais se teme é cair e por isso nos esforçamos para nos manter no ar. Consegue fazer isso?
  Lentamente, o rapaz começou a levitar, como se um cabo invisível o puxasse, balançando-o para um lado e para outro sem, no entanto, tocar as paredes laterais do beco. Lá embaixo, André e David observavam a subida suave de Jonas, que pediu para eles esperarem ali que ele retornaria logo e, em seguida, atravessou o buraco. André, mal podia acreditar no que acabara de presenciar, mas o seu amigo, David, que não parecia abalado, sentou-se no chão e apoiou as costas na parede; André fez o mesmo.
  Como Jonas prometera, em pouco tempo estava de volta, mas ao invés de descer voando como subiu, ele se pendurou e saltou, chegando ileso ao chão. Ele vinha com um sorriso largo e um pedaço de papel na mão, caminhando apressado.
   - Onde você foi? – perguntou David, levantando-se e notando a expressão do amigo. – E que cara é essa? Traz boas notícias?
   Desdobrando o papel em branco e sacando uma caneta de sua sacola de couro, Jonas explicou:
   - Fui ver o Velho! – David fez uma cara de espanto, mas Jonas continuou. – Eu perguntei para ele como eu poderia chegar ao deserto de montanhas e ele me falou que eu poderia chegar lá de muitas maneiras, mas somente de um jeito eu chegaria onde queria chegar. Então ele me deu esse papel em branco e pediu para eu queimá-lo quando soubesse o nome de quem eu queria encontrar. André – disse, estendendo a caneta e o papel para ele – faça as honras! Escreva o nome do seu tio.
  O garoto sentia sua mão trêmula ao começar a traçar cada letra do nome e quando terminou, ainda deu uma olhada para conferir se estava escrito corretamente e devolveu o papel a Jonas que, usando um isqueiro, ateou fogo ao papel, deixando-o cair lentamente, enquanto as chamas dançavam sobre o nome.
  Quando o papel tocou o chão, instintivamente cada um se segurou no outro e sentiam como se tudo estivesse girando e se desfazendo ao redor deles. Então tudo parecia ter voltado ao normal, exceto pelo vento forte que soprava e pelas tenebrosas e retorcidas torres de um castelo que se erguia diante deles.

[Fim da 4ª parte]

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