- Em coma?! – disse o rapaz usando boné azul, arqueando as sobrancelhas.
- Sim, há cinco anos, foi o que ele me disse. – respondeu o colega de classe, um tipo pálido e alto. - Vou procurá-lo mais tarde e perguntar mais sobre esse tio dele.
O professor olhou para os dois alunos, interrompendo por alguns segundos sua explicação, depois retomou a aula. Aqueles dois eram seus melhores alunos, mas ultimamente eles andavam mais inquietos e sempre os flagrava cochichando em meio à aula. Então a aula acabou e o professor viu os alunos saírem da sala apressados...
Eles estavam no segundo ano de Psicologia e estavam às vésperas de mais uma semana de provas. O mais alto ia à frente falando no celular, enquanto o outro ia atrás procurando alguma coisa em sua mochila.
- Jonas... – o outro ainda estava distraído com o celular. - Jonas, espere um minuto! Eu acho que esqueci uma coisa na sala. Já volto!
- De novo, onde você estava com a cabeça quando decidiu trazer isso aqui?
Mas o colega já havia voltado à sala de aula, em tempo de ver o professor saindo, então aproveitou e entrou na sala aberta e foi até a sua carteira...
“Ufa! Ainda está aqui, graças a Deus!”, pensou, respirando, aliviado, enquanto pegava algo envolto em um pano azul-marinho e, cuidadosamente, guardava em sua mochila. Antes de sair da sala, olhou para os dois lados do corredor e como não havia mais ninguém foi embora, fechando a porta atrás de si.
Eles combinaram que se encontrariam no Parque das Fontes, às três da tarde, então cada um foi para casa. Mal eles se apartaram, Jonas sacou o celular outra vez para ligar mais uma vez, para confirmar a presença do seu misterioso contato.
- Às três horas, entendeu? – disse ele ao seu interlocutor. - Eu explicarei tudo!
Estava uma tarde agradável quando eles se encontraram no parque, mas um vento suave parecia dar vida às árvores próximas.
- Vamos ver se eu entendi direito! – David ainda estava um pouco perdido com a história que acabara de ouvir. - Seu tio sobreviveu a um acidente de carro, apesar de ter ficado em coma; até aí, tudo bem! Mas você disse que não há mais nada de errado com ele, exceto pelo estado em que ele se encontra. Porque ele não acorda?
Ele falava a um rapaz que parecia perdido em seus pensamentos, com olhos que pareciam um par de fendas. Em resposta, ele apenas deu de ombros. Jonas, no entanto, tinha um brilho no olhar. Um brilho peculiar, mas próprio de sua personalidade.
- André, você já ouviu falar de Freud, naquela expressão “Freud explica” e tal, mas eu vou te dizer uma coisa: quem acertou em cheio foi Jung! – como os outros dois ficaram em silêncio, Jonas continuou. – Gente, eu estou fazendo só uma referência ao inconsciente coletivo. Acredito que posso ajudar seu tio, mas vou precisar de dois favores.
Tirando dois espelhos pequenos de uma sacola, Jonas explicou que um daqueles estranhos espelhos deveria ficar no quarto onde o tio dele estava e o outro ficaria com ele, com a condição de que ninguém tocasse, quebrasse ou roubasse os artefatos. André olhou em torno dos espelhos, para o desenho estranho que a moldura formava.
- Por que eles têm nove lados?
- Porque são espelhos especiais: David e eu também temos espelhos idênticos, de forma que eles formam uma espécie de rede.
“O plano é o seguinte: você deixa um espelho desses com o seu tio ainda hoje e leva o outro com você, mas antes de dormir descubra o espelho e deixe em algum lugar do seu quarto onde tenha certeza de que ninguém irá tocá-lo. É importante que você evite quebrar os espelhos! Por essa noite, talvez você fique desorientado, mas assim que David e eu entrarmos, nós o levaremos à torre. Movido pelo instinto, com certeza você vai conseguir sair por conta própria. Amanhã, procure-nos na faculdade para novas instruções, mas assim que acordar, eu sugiro que faça um relatório da primeira experiência, antes de esquecer – o que eu duvido muito que aconteça – para eu incluir nos meus estudos sobre os sonhos.”
- Sonhos?! – perguntou André, ainda desnorteado.
- Sim, será uma forma diferente de sonho, pois é possível trazer coisas de lá, inclusive uma alma perdida de alguém em coma... – Jonas pegou um dos espelhos e apontando com o indicador para a superfície escura. – Fica tudo aqui! O espelho é como uma janela, mas também serve como porta.
André estava processando as palavras de Jonas, ainda sem entender qual seria o motivo dele querer ajudar com o tio em coma, ainda descrente também com aquela história de sonhos e espelhos. David disse-lhe para tomar cuidado que havia perigos do outro lado para quem entra pelo espelho, pois ele poderia trazer coisas indesejadas do outro lado, corrompendo o seu próprio espelho. Ele nunca ouvira falar em tal coisa!
Jonas e David se despediram de André, que foi à clínica onde seu tio estava internado, para deixar o espelho, tomando a precaução de avisar à enfermeira responsável que tomasse cuidado, pois era uma coisa muito valiosa para o tio. Quando chegou em casa, ficou um tempo olhando o pequeno espelho, cuja superfície poderia ser facilmente ocultada com a palma de sua mão e cuja moldura feita de madeira escura continha inscrições estranhas, hebraicas e algo que ele identificou como uma lua crescente. Agora era só esperar a hora de dormir.
Enquanto iam embora, Jonas e David conversavam a respeito do plano louco de resgatar o tio de André. Jonas explicou que, como na primeira experiência era comum o viajante ficar desorientado, o novato não teria muita utilidade, por isso eles contariam com o auxílio de pessoas do outro lado. Eles iriam, como combinado, à Torre dos Ventos para encontrar uma pista do tio do André, copiariam tudo aquilo que julgassem necessário e emergiriam, mas o desafio seria chegar até ele usando algum atalho.
- Por isso o espelho no quarto do tio dele, compreende?
David custava a acreditar que funcionaria, mas ele entendia que o amigo tinha um estranho talento para lances sortudos, nessas experiências extraordinárias especialmente.
Quando chegou a noite, antes de dormir, David descobriu o seu espelho do pano azul-marinho e pendurou no lugar habitual, na parede diante da cama e se deitou. Não demorou muito para começar a relaxar e se sentir embriagado pelo sono então, teve a impressão de flutuar sobre um lago. Foi rápido!
Ele se viu, de repente, em uma sala ampla, com quadros enormes nas paredes e livros empilhados um sobre o outro, formando uma estranha escadaria para um andar superior e havia uma versão maior do espelho, preso à parede de tijolos avermelhados. Aproximou-se do espelho, tocando sua superfície fria, sem reflexo algum. Uma gaiola vazia começou a balançar, como se um vento invadisse o lugar e ele se afastou do espelho que nada refletia, permitindo assim que Jonas entrasse na sala através dele, com um livro marrom nas mãos.
Sem trocar qualquer palavra, os dois subiram a escadaria de livros velhos e grossos, passando por uma porta, saindo de uma casa próxima ao posto de gasolina, onde havia muita gente aglomerada. André estava lá, sentado a uma mesa, olhando com visível curiosidade um Land Rover preto.
- David, eu vou procurar os outros e você cuida dele. – disse apontando para André. – Nos encontramos na Torre; não demore!
Olhou de relance o Land Rover, aparentemente preocupado e saiu em meio à multidão.
Para David, não foi difícil remover André dali, de tão confuso que estava. Tocou seu braço e, num brusco movimento, levou-o à entrada da Torre dos Ventos e subiu as escadas, juntando-se aos outros. Eles tinham providenciado uma máquina de fotocópia e já tinham encontrado os livros com as prováveis pistas do tio do André que Jonas precisava. David aproximou-se deles, avisando-os que o novato estava lá embaixo. Jonas parecia atônito:
- Dave, eles me disseram que sabem de um lugar onde o tio do André pode estar, no deserto de montanhas. Deve ser onde está o Castelo!
Enquanto eles conversavam, quase sem ser notado, André – ainda tomado pela confusão da primeira vez – se aproxima da porta, mas depois de uns poucos minutos, ele sai sem dizer nada. David vai ver onde ele estava indo, então vê o mesmo Land Rover do posto de gasolina vindo pelo gramado.
- Jonas, aquele Land Rover preto que a gente viu está vindo aí!
Devolvendo os livros às estantes da sala, Jonas ia dizendo aos outros para esperarem o seu sinal, quando ele retornasse com novidades. Ele se despediu deles, recurvando-se com uma sacola de pano grosso nas mãos e, ao mesmo tempo em que voltou à posição original, ele desapareceu como vapor. Os outros também desapareceram e David, ainda preocupado com André, deu uma última olhada pelas escadas...
“Eles vêm aí!”, pensou, antes de desaparecer também.
. . .
- Um Land Rover? Tá brincando, né? – perguntou Jonas, aos risos, ao ler o relatório de André. – Desde quando a Polícia Federal tem um Land Rover?
- Cara, foi um sonho apenas, eu já disse!
- Você vai perceber, com o tempo, que não foi um sonho qualquer! – advertiu, balançando o indicador para André. Dobrou o relatório, guardando em sua mochila e continuou. – Quando não desejar viajar pelo espelho, apenas cubra-o com algo escuro e guarde-o bem. Mas essa noite – disse, sorrindo exultante – nós vamos trazer seu tio de volta.
André ainda tinha algumas perguntas sem respostas:
- Como você descobriu? – hesitou um pouco, escolhendo as palavras – Como descobriu que podia viajar pelo espelho?
David, que até então estava lendo um livro sobre Psicometria, olhou curioso de André para Jonas. Esse olhou para cima, como a procurar estrelas durante o dia, com as mãos na cintura:
- Rapaz! Longa história, hein... – voltando-se para André. – É uma longa história!
[Fim da 2ª parte]
Nossa :O Adorei
ResponderExcluirVai ter mais? Cadê, cadê?
Mó "A origem" (já assistiu?), só que melhor.
Neguinho...tá me deixando muuito curiosa hein? Acho melhor me contar o final logo antes que eu morra de curiosidade! HUnf!
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