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O Viajante do Amanhã



  Uma placa dizia que aquela praça tinha sido inaugurada no dia 26 de maio de 1955. Diante dela estava um rapaz magro, usando uma blusa de lã aberta e calças jeans. Em seus óculos escuros, o reflexo distorcido da placa parecia um desenho surreal. De sua mochila ele tirou uma câmera fotográfica e, discretamente, disparou contra a placa levemente escurecida pelo tempo. Assim que terminou, ouvindo o avanço automático do filme, olhou mais uma vez a placa, coçando a nuca. De repente, sua visão turvou-se e sentiu como se mergulhasse sua cabeça num tanque d’água e a pressão o ensurdecesse levemente.
  A primeira vez que sentiu isso foi aos 14 anos, quando viajava de mudança com seus pais por uma rodovia. Era de manhã e tocava algo no rádio – ele não lembrava muito bem, mas parecia bom. Estava tão distraído com um imenso e vistoso milharal que não teve tempo de ver contra o que o carro deles colidira, mas sentiu seu corpo sendo arremessado e bateu com a cabeça no pára-brisa. Estava escuro quando acordou, com um imenso galo no topo da cabeça, caído na beira da estrada, todo ralado e totalmente desorientado. Procurou o carro onde estavam seus pais, chamando por eles, sem sucesso. O desespero crescia a cada passo e as lágrimas se misturavam com o sangue coagulado em seu rosto. Então uma luz ofuscou-lhe a visão e, instintivamente, ele acenou; era uma caminhoneta com um motorista de cara gorda, desconfiado inicialmente, mas surpreso ao ver que se tratava de um garoto todo machucado.
  - O que você faz aqui, rapaz? – perguntou o homem.
  Ele tentou explicar sobre o acidente, mas não havia sinal algum do carro ou de quaisquer pessoas. Então o homem ofereceu uma carona até a cidade, onde ele poderia cuidar dos ferimentos e descansar. Não havia documentos com ele e ninguém sabia do acidente na estrada; no hospital, tudo o que sabiam era que seu nome era Oscar e que os ferimentos não eram graves, então ele foi liberado na mesma noite.
  O motorista que o socorreu ofereceu hospedagem e ele ficou em sua casa até o dia seguinte, quando percebeu um calendário na parede da cozinha, durante o café da manhã. Primeiro, ele fixou o olhar, com o copo de leite pairando no ar, em seguida, virou-se para seu anfitrião e sua esposa – que, conforme disseram, não tinham filhos – e perguntou:
  - Que dia é hoje? – o leite parecia congelado dentro do copo e, por um momento, foi como se todo o resto do mundo houvesse parado.
  O casal imaginou que o garoto ainda estivesse confuso por causa do acidente e pelo desaparecimento misterioso de seus pais. Quando responderam, ele ainda quis saber o ano e a resposta veio sobre ele como as ondas de um mar agitado.
  Se o que eles disseram era verdade, então de alguma forma ele voltou no tempo!
  “Um ano”, foi o que ele pensou minutos antes de sair sem dizer aonde ia. Pareciam ser pessoas corretas, mas ele precisava saber de mais gente, mas a resposta era sempre a mesma. Ele não queria ficar sozinho naquela cidade. Ele queria seus pais.
  Ele passou em frente a uma loja de eletrônicos, onde havia uma TV de plasma ligada e ele reconheceu um apresentador de um programa de auditório. Talvez fosse uma reprise porque no começo do ano aquele mesmo apresentador tinha morrido depois sofrer um ataque cardíaco durante uma gravação. Um moço de óculos escuros espelhados usando também um boné colorido estava na frente da loja falando com um microfone, anunciando uma “super oferta”.  Nesse instante, passavam algumas pessoas por eles e talvez fosse por isso ele ficou tonto e se apoiou em uma placa colocada diante da loja. Então o som do moço ao microfone pareceu vir de longe e tudo ficou embaçado...
  Alguém esbarrou nele e ele caiu, embora tentasse segurar-se na placa, mas ela não estava mais ali, nem o moço de óculos escuros e no lugar da loja de eletrônicos havia uma relojoaria. Ele entrou e perguntou-lhe onde estava e em que ano.
  - Esse não é o tipo de pergunta que se escuta todo dia. – respondeu o relojoeiro, olhando-o sobre os óculos. Ele tinha a ponta do nariz um pouco avermelhada, como se estivesse resfriado. – Especialmente de alguém da sua idade!
  Oscar reparou em sua mão um antigo relógio de bolso. Dando uma olhada em volta, ele percebeu relógio de pêndulo atrás do homem. A resposta que ele teve já era esperada, até porque tinha um calendário quase invisível em meio a tantos relógios. Agora ele tinha voltado quatro anos.
  - Pelo jeito você está perdido. – continuou o relojoeiro. – Apesar de continuar no mesmo lugar, parece-me que você vem do futuro.
  Mais atônito do que jamais esteve em toda sua vida, Oscar se pergunta como aquele homem sabia tanto sem ele ter dito nada. Ele precisava de respostas e tinha quase certeza de que aquele relojoeiro as tinha.
  - Ei! Espera aí, como você sabe que eu vim do futuro?
  - Seu relógio de pulso é de um modelo desconhecido, mas foi um palpite que tive. – respondeu o relojoeiro, voltando a mexer no relógio de bolso. – Aliás, você não é o primeiro que aparece, mas não vá pensando que haja muitos por aí.
  “Algumas pessoas descobrem esse talento sobre o tempo, mas só se tornam conscientes dos riscos quando já é tarde. Quando não podem mais voltar! Existem tipos que viajam para o passado ou para o futuro e outros mais raros ainda que têm controle total e podem ir e voltar. Tenha cuidado para não ir tão longe no tempo, filho.”
  As palavras do relojoeiro – Dan Werner era seu nome – ainda estão bem vivas na memória de Oscar. Ele pensou que nunca veria seus pais novamente, mas Werner ensinou-lhe o ofício de relojoeiro e um dia foram até sua cidade natal, onde morou antes do acidente. Os viu de longe, de dentro do carro de Werner. O mais bizarro foi ver a si mesmo, brincando com o cachorro na frente de casa!
   Então um dia ele comprou uma Nikon, alguns filmes e foi mostrar para Werner, mas o velho relojoeiro não estava. Andou pela casa toda, mas foi na sala que encontrou uma pista: o velho relógio de bolso aberto sobre a mesinha de centro. Não havia sinal dele ali também, mas pegando o relógio ele percebeu que o ponteiro girava ao contrário.
  Desde aquele dia ele começou a testar o seu talento de voltar no tempo e só foi parar no ano 1991, pois achava que podia estar indo muito longe, conforme foi dito por Werner quando se conheceram. Sempre alimentou a esperança de salvar seus pais do acidente, mas voltando tanto assim em seus testes ele se distanciava mais e mais. Então deixou os anos passarem e ele já estava com 25 anos, fazendo uns trabalhos como relojoeiro e fotógrafo, quando encontrou um jornal antigo com fotos de uma praça da cidade. Eram fotos de quando a praça estava sendo inaugurada e em uma delas, nitidamente, ele viu Werner limpando seus óculos com um lenço, enquanto olhava para o lado. Era ele, sem dúvida!
  O velho relojoeiro tinha muita coisa para explicar.
  Na velha fotografia, Werner parecia estar só, mas agora – depois de viajar mais do que jamais havia viajado – Oscar o vê de longe, conversando com uma mulher usando um xale sobre a cabeça, protegendo-se do sol. Uma brisa fresca sopra em seu rosto e ele torna a olhar a placa de metal com a data da inauguração, novinha em folha, ainda brilhando. Ele tira outra foto da placa e quando se vira para fotografar, discretamente, Werner e a mulher de xale, percebe que o relojoeiro está sozinho, sentado num banco próximo de onde esteve com a mulher.
  A passos calmos, porém largos, Oscar caminha em direção a Werner. Ainda há muita aglomeração na praça recém-inaugurada e ele precisa costurar entre as pessoas para chegar até o relojoeiro. Quando está mais próximo, ele finge fotografar um pombo perto de Werner e quando abaixa diz:
  - Pode me explicar o que faz aqui, Dan?
  O homem não parece surpreso em vê-lo. Apenas faz sinal para ele se sentar, mas Oscar reluta. Então o relojoeiro começa:
  - Eu descobri meu talento anos depois de você ter sumido. Eles me encontraram quando abri a loja. Uma loja maior do que aquela onde você me encontrou.
  Oscar, que não estava entendendo aonde Werner queria chegar, interrompeu-o:
  - Eles quem? Do que você está falando?
  Nesse momento, Dan olha por cima do ombro de Oscar e ele ouve uma voz de mulher. A mesma mulher que estava com o relojoeiro antes:
  - Werner está comigo, Ana. – Oscar olha para trás, vendo uma senhora com cerca de cinquenta anos, sorrindo para ele, enquanto falava no que parecia um celular prateado.
  O nome que a mulher falou – evidentemente, o nome da interlocutora – era bem familiar. Werner levantou-se do banco, ajeitando seu paletó e a mulher continuou:
  - Sim, ele está aqui também. – falavam dele. – Não se preocupe ninguém nos viu. Estamos a caminho!
  A mulher guardou o aparelho prateado em sua bolsa e olhou para os dois. Werner segurou-o pelo braço:
  - Esse relógio foi dado por seu pai no Natal.
  - Como você sabe disso? – Oscar estava prestes a sair correndo.
  Nesse momento, a mulher segura seu outro braço, apertando um broche redondo em seu casaco. Ele se sente fraco e antes de perder os sentidos ainda consegue ouvir a mulher dizendo em seu ouvido:
  - Oscar Werner, esse é seu irmão. O irmão que você nunca conheceu, mas que cresceu ouvindo falar de você. Ele ouviu cada boato ou teoria sobre o seu sumiço e agora está aqui para te levar para casa.
  A última coisa que ouviu quando adormeceu – e a primeira quando acordou – foi o alarme do seu relógio digital ecoando em seu quarto escuro.

Comentários

  1. Muito bom Leandro, lendo se conto descobri o quanto sentia saudades desse tipo de leitura e me senti com treze anos de novo.

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